Pedro Benevides (Observatório da Imprensa)
Uma das mais recentes reportagens de capa da revista Veja (edição 1950, de 5/4/2006) faz lembrar o jovem poeta Lucien Chardon, personagem que Honoré de Balzac (1799-1850) imortalizou no romance reconhecido como uma das obras-primas da literatura universal: Ilusões perdidas. Depois de deixar o interior da França rumo a Paris, Lucien consegue emprego na imprensa diária e descobre que o compromisso com a ética e a verdade não é o forte dos jornalistas. Na França de 1820, a corrupção, o suborno, as trapaças políticas e as artimanhas jurídicas fazem parte da profissão. O romance foi publicado em 1843, mas é incrivelmente atual nos dias de hoje.
Exemplo disso é justamente a capa da Veja que trombeteia: "Golpe sujo: a história secreta da mais grave crise do governo Lula". O texto logo abaixo do título sugere um furo à altura da mais influente publicação semanal do país: "Um milhão de reais para tentar convencer funcionários da Caixa a assumir a culpa pela quebra de sigilo do caseiro. Quem estava na casa de Palocci quando o ministro recebeu o extrato. O sigilo do pai do caseiro também foi quebrado. O famoso advogado convocado para forjar uma versão salvadora".
No entanto, a sensação de quem lê a matéria com olhar mais crítico é de desapontamento, no mínimo. Logo na introdução, o texto cria expectativa antecipando o conteúdo das páginas seguintes: "A reportagem conta como a tentativa de calar o caseiro e desqualificar sua história produziu uma trilha de atitudes criminosas" (nitroglicerina pura, pensa o leitor!). E até arrisca projeções cabalísticas para o futuro: "Pela natureza dos crimes cometidos e pela posição dos envolvidos na hierarquia política do país, pode-se presumir que a crise esteja apenas no começo."
Logo, presumimos todos que a revista apresentará documentos, e-mails trocados entre os envolvidos, depoimento de testemunhas oculares, confissões, enfim, toda sorte de provas materiais capazes de fundamentar a reportagem. Mas, para espanto geral da nação, do começo ao fim não há sequer um par de aspas capaz de sustentar o que a Veja chama de "trilha de atitudes criminosas". Apenas a introdução explica que "a revista obteve informações sobre a estratégia montada pelo governo para tentar, até o último minuto, que Palocci não fosse responsabilizado pela quebra de sigilo".
Só isso! Obteve de onde? Quem disse isso? Como se a fonte fosse algo irrelevante e dispensável em jornalismo, a reportagem segue como um rolo compressor. O repórter Marcelo Carneiro, que assina o texto, usa expressões como "Palocci e seu bando" ou "faxina destinada a apagar as provas do crime". Chega ao ponto de afirmar que, depois de receber o extrato do caseiro, Palocci "saiu do escritório radiante" e "foi dormir contente"!
Eles entrevistaram um companheiro íntimo a quem o ministro confidenciou tamanho contentamento? Ou teria Palocci compartilhado a alegria com seu terapeuta, ao divã? Quem sabe o padre a quem ministro teria se confessado, naquele dia, feriu os preceitos milenares fundamentados pela Santa Fé e revelou tudo ao repórter da Veja? Por mais surreal que seja a fonte ela se faz necessária. Como pode o jornalista descrever categoricamente o estado de espírito de alguém a quem não entrevistou?
Revoltante e perturbadora
Não pára por aí. O repórter garante que, depois da repercussão negativa sobre a violação do sigilo bancário do caseiro, surgiu uma proposta "desesperada e indecorosa" de oferecer um milhão de reais a algum funcionário da Caixa disposto a assumir a culpa. Mas não diz de onde tirou essa informação. Diz apenas que a idéia "circulou" durante uma conversa entre o advogado Arnaldo Malheiros, o então presidente da Caixa Econômica Federal, Jorge Roberto Mattoso, e o ex-ministro Antonio Palocci. Diante da negativa do advogado (o único a ser ouvido pela matéria), o texto alfineta: "E o que o advogado foi, então, fazer em Brasília?".
O curioso é que a Veja deixou outras perguntas mais relevantes no ar. Por exemplo: as denúncias do advogado Rogério Tadeu Buratti, ex-assessor de Palocci na prefeitura de Ribeirão Preto, vieram a público no dia 19 de setembro. Foi nesse dia em que ele acusou a concessionária da limpeza pública do município, a Leão&Leão, de pagar uma propina mensal de 50 mil reais à administração Palocci, repassada por ele, ou com a sua autorização, ao tesoureiro petista Delúbio Soares. Quase dois meses depois, o mesmo Buratti decidiu denunciar, pela Veja, que a campanha do presidente Luiz Inácio Lula da Silva recebeu 3 milhões de dólares de Cuba. E a revista deixou escapar a pergunta mais elementar: por que o ex-assessor esperou tanto tempo para falar sobre o suposto repasse milionário? Estava esperando o quê?
Ninguém sabe. Como se a denúncia por si só fosse suficiente. Tal como o personagem de Balzac, outros profissionais de imprensa (e por que não dizer o público-leitor) têm as ilusões perdidas na medida em que são cada vez mais freqüentes os casos de antijornalismo como os citados neste artigo. É lamentável que a mais influente publicação semanal do país ignore os princípios mais básicos do jornalismo, como citar fontes, apresentar provas e ouvir o outro lado. A reportagem desta semana começa citando Willian Shakespeare. Dramaturgia à parte, a tragédia da vida real, neste caso, é mais revoltante e perturbadora.
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